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A ditadura Vargas, a gentrificação e a Cracolândia: o que há em comum?

Não faltam exemplos das consequências perversas do tombamento nos centros históricos brasileiros

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Cracolândia em São Paulo. Foto: Jorge Araújo/Fotos Públicas


O instituto do tombamento no Brasil, originado durante o Estado Novo sob a ditadura de Vargas por meio de decreto-lei número 25 de 1937, representa um capítulo peculiar na proteção do patrimônio cultural. Sua inserção no ordenamento jurídico, sem apreciação pelo Congresso Nacional, ressalta sua gênese em um período ditatorial brasileiro. Embora tenha sido concebido com boas intenções, é crucial examinar de que forma esse instrumento pode, paradoxalmente, comprometer a conservação do rico patrimônio cultural do Brasil e seu próprio desenvolvimento.

O tombamento, enquanto instrumento legal, emerge como uma resposta à necessidade constitucional de preservação do patrimônio cultural. Porém, a atual legislação sobre o tema precede a Constituição democrática de 1988.

Através do decreto-lei, o governo de Getúlio Vargas buscava salvaguardar bens culturais de relevância histórica, artística e arquitetônica, atribuindo-lhes um status especial que impedia sua descaracterização ou destruição. Contudo, a natureza autoritária do contexto em que o tombamento foi estabelecido levanta questionamentos sobre a legitimidade do processo, uma vez que não foi submetido à apreciação democrática do Congresso Nacional.

Apesar das boas intenções subjacentes à criação do instituto, o tombamento também carrega consigo desafios e controvérsias. A imposição de restrições sobre propriedades particulares, muitas vezes sem a devida contrapartida financeira para sua preservação, pode gerar resistência por parte dos proprietários e, em alguns casos, resultar em negligência ou deterioração gradual do patrimônio tombado.

Assim, a análise crítica do tombamento no contexto de sua origem ditatorial é essencial para compreender como esse instrumento, apesar de seu propósito nobre, enfrenta dilemas intrínsecos que demandam reflexão e ajustes para garantir uma efetiva preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Não faltam exemplos das consequências perversas do tombamento nos centros históricos brasileiros, sendo que tais desdobramentos muitas vezes se traduzem na desvinculação progressiva da população dessas áreas emblemáticas.

Um fenômeno notável é observado em São Paulo, onde a rigidez das normas de preservação impactou o antigo centro da cidade, impulsionando uma migração da população para novos centros urbanos. Bairros como Pinheiros, Vila Madalena e Barra Funda emergiram como alternativas, atraindo não apenas residentes, mas também investimentos comerciais e culturais que antes se concentravam nos centros tombados.

Esse movimento contribui para a gentrificação, caracterizada pelo deslocamento de comunidades tradicionais, transformação da paisagem urbana e aumento dos custos de vida, evidenciando os desafios inerentes à aplicação do tombamento como mecanismo de preservação do patrimônio.

Nos Estados Unidos, notadamente em cidades como a capital Washington (DC), tem-se observado uma crescente limitação do instituto do tombamento. Essa mudança de abordagem visa a favorecer a expansão urbana e assegurar o acesso à moradia nas proximidades dos centros urbanos.

Uma alternativa inovadora tem sido a adoção de representações visuais, como fotografias antigas, para preservar a memória histórica e parte do patrimônio cultural. Essa abordagem oferece uma solução mais flexível, permitindo o desenvolvimento urbano enquanto ainda se mantém o registro visual e descritivo do que existia anteriormente. Essa estratégia, ao contrário do tombamento mais rígido, busca conciliar o progresso urbano com a preservação da identidade histórica, encontrando um equilíbrio entre o dinamismo urbano e a conservação do patrimônio.

Em última análise, a reflexão sobre o tombamento no contexto brasileiro, exemplificado pelos desafios enfrentados nos centros históricos de São Paulo, destaca a importância de buscar abordagens equilibradas na preservação do patrimônio cultural. Uma medida excessivamente restritiva pode conduzir a um cenário desolador, como testemunhado na desocupação de áreas tombadas na capital paulista.

A complexidade em atender a todas as imposições muitas vezes leva à fuga de moradores e comerciantes, resultando em espaços abandonados propensos à ocupação desordenada, como a triste realidade da Cracolândia. Contrastando com essa dinâmica, a flexibilidade adotada em algumas cidades nos Estados Unidos, por representações visuais e descrições detalhadas, sugere uma abordagem mais adaptável e sustentável, capaz de conciliar o desenvolvimento urbano com a preservação histórica, evitando os vazios urbanos que propiciam a marginalização social.

 

Izabela Patriota é advogada e diretora de Relações Internacionais no LOLA Brasil


Este artigo foi originalmente publicado na Revista Crusoé.



 
 
 

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