Os batimentos cardíacos do feto
- Izabela Patriota

- 10 de dez. de 2024
- 4 min de leitura
Os problemas das leis municipais que interferem nas hipóteses legais de aborto

Ultrassom: lei de Maceió pede que mulheres vejam imagens como essa
Em dezembro de 2023 foi aprovado, na Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria, Rio Grande do Sul, um projeto de Lei que contempla a escuta de batimentos cardíacos de fetos em mulheres que ponderam sobre a interrupção da gravidez. Em Maceió, entrou em vigor a Lei nº 7.492, que faz com que mulheres que optem por realizar aborto legal na rede pública do município tenham que assistir a vídeos e visualizar imagens com fetos.
Esses são apenas dois exemplos das diversas normas municipais em processo legislativo ou recentemente concluídas, com esse teor, no Brasil.
O frenesi em torno do tema do aborto no Brasil é incompreensível, considerando que o país já possui uma legislação que criminaliza a prática. No atual contexto jurídico, a interrupção da gravidez é permitida apenas em três situações específicas: em casos de estupro; quando há risco de vida para a mulher; e nos casos em que o feto é diagnosticado como anencéfalo.
Portanto, todas as medidas que pretendem impor às mulheres escutar os batimentos cardíacos de fetos ou olhar fotos possuem requintes de crueldade. Experiências como as previstas nessas iniciativas submetem as gestantes que foram estupradas, estão sob risco de vida ou estão gerindo um feto anencéfalo a experiências ainda mais traumáticas.
Também em dezembro de 2023, Kate Cox, uma americana residente no Texas, com 31 anos, teve de sair do seu estado de residência para poder dar termo à sua gestação. Aquela foi uma decisão difícil para ela — que planejou ser mãe e queria a todo custo manter a gravidez.
Mesmo diante deo risco de vida e sendo inevitável a inviabilidade do feto, Kate precisou viajar para outro estado americano para realizar um procedimento que já estava lhe afligindo amargamente: interromper uma gravidez desejada e planejada.
Em um caso como o de Kate, o trauma ficaria ainda maior se ela fosse confrontada com o som de batimentos cardíacos fetais e a imagem de um feto que jamais poderia sobreviver.
É evidente que a vida já formada da mulher se sobrepõe à "iminente vida" de um feto ou embrião. Essa opinião não é somente minha, como também da filósofa Ayn Rand. Para ela, quem não compreendia e aceitava o direito das mulheres de escolher, pouco ou nada entendia sobre direitos individuais. Afinal, uma gravidez, naturalmente, põe em risco a vida da mulher e nenhuma deveria ser obrigada a enfrentar esse risco a contragosto.
Além dos casos como o de Kate, existem os de mulheres que à revelia estão grávidas, ou seja, foram vítimas de estupro. Nessas situações, o trauma e a tortura de exigências como as impostas em Santa Maria e Maceió são ainda maiores. Agrava-se ainda mais a injustiça ao submetê-las a um processo que irremediavelmente reaviva traumas profundos.
Ao impor a escuta de batimentos cardíacos de fetos ou a exposição de imagens impactantes, tais dispositivos legais não apenas violam a privacidade e autonomia das mulheres, como as expõem a situações de intenso sofrimento psicológico. É crucial reconhecer que, ao forçar essas práticas, estamos, na verdade, promovendo uma forma de tortura — expressamente proibida na Constituição Brasileira.
Um dos pontos centrais de contestação reside no direito constitucional à privacidade e à autonomia. A Constituição garante o direito das pessoas de tomarem decisões relacionadas à sua saúde e ao seu corpo, sendo a escolha sobre a continuidade ou não da gestação uma decisão altamente pessoal — sobretudo nos casos já previstos na legislação brasileira. A imposição da escuta de batimentos cardíacos pode ser interpretada como uma tentativa de influenciar a decisão da mulher, indo de encontro ao princípio da liberdade individual consagrado na legislação.
Ao vincular a permissão para a interrupção da gravidez a condições específicas, a legislação já reconhece a complexidade dessas situações e a necessidade de respeitar as decisões individuais das mulheres. No entanto, ao adotar práticas coercitivas e degradantes, as recentes leis municipais demonstram uma preocupante falta de reconhecimento da dignidade feminina.
Além de inconstitucionais sob ponto de vista material, uma vez que violam os princípios constitucionais, tais projetos também incorrem em inconstitucionalidade formal. Isto é, em virtude de a matéria em questão ser de competência federal, a União é a entidade federativa detentora da competência para legislar sobre o tema. Ao estabelecerem normas divergentes em âmbito municipal, essas leis não apenas desconsideram a hierarquia normativa do ordenamento jurídico, mas também desafiam a autoridade legal estabelecida pela Constituição Federal.
A inconstitucionalidade formal se manifesta como mais um aspecto crítico dessas legislações, ressaltando a importância de uma abordagem coesa e alinhada com o sistema legal vigente. Essas leis municipais não apenas falham em reconhecer o direito à integridade física e mental das mulheres, mas perpetuam uma cultura que normaliza a violência contra elas.
Izabela Patriota é advogada e diretora de Relações Internacionais no LOLA Brasil
Este artigo foi originalmente publicado na Revista Crusoé.




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